- E veio um pouco dum gosto...
- Amargo ou azedo?
- Os dois, assim, bem na parte alta da garganta.
- É angústia.
- ...
- Quando você deitava de lado, melhorava?
- Não, a mesma coisa. De bruços... nada.
- É, se fosse azia melhorava.
Continuaram e sentaram na beira da calçada, um pouco afastados da boca-de-lobo, pra evitar o mau cheiro.
- Mas desde quando você tá assim?
- Não sei bem. Não me lembro de como era não ter.
- Desde pequeno, então?
- Não sei.
- Mas você não era assim, né? Nunca te falaram nada?
- Eu tinha problemas com minha alimentação, mas só. Agora isso é um pouco mais estranho. Me tira o sono.
- Não tem nada que ver com comida, não. Você era desses moleques sozinhos?
Os dois pararam pra olhar uma briga do outro lado da rua, mas ela era, como todo o resto, insignificante.
- Tipo, não tinha amigos?
- Tinha sim. Bons amigos. Respeito e gosto da maioria deles até hoje, mesmo não os vendo muito.
- Você não sai com muita gente, né?
- Não. No geral tenho preguiça.
- Devia sair mais. Conhecer mais gente...
- A troco de quê? Ainda tenho bons amigos. Apenas os vejo pouco. Não vou forçar o que não sou apenas pra não ficar sozinho. O problema é outro...
- Outro qual, manézão?
- O dia-a-dia.
- ...
A briga, que ainda não havia terminado, se estende pro lado da rua em que eles estão. Os dois se levantam, como quem faz um favor. Seguem.
- Entende o que quero dizer? Não se trata de ir às festas, bares, conhecer ou não as pessoas. Isso é o de menos.
- Como de menos? Vivência é o essencial!
- Não. Nunca foi. Não isso. Ficar em casa e trabalhar minha própria vida, cuidar de mim, é muito mais importante do que falsear relações e forjar sorrisos.
- Mas...
- Não estou negando a necessidade do outro. "A felicidade só é verdadeira quando é partilhada", já disse o Super-Andarilho. Acredito nisso. Mas partilhar é muito mais do que apenas se colocar diante o outro.
- Sim, mas...
- Mas nada. Vive-se muito numas de querer se expor aos outros, de contar o que se passa, de sorrir mais aos outros do que para si. E isso não faz sentido. Quero que os outros reajam verdadeiramente a minha verdade, assim como eu reagiria a deles.
- Isso não existe. Não da pra querer gente que te conhece assim o tempo todo, nesse cotidiano que você espera.
- Você falando assim, parece que é o mundo todo o que busco.
- Só que é do mundo que você cobra isso.
- Cobro, mas não exijo. Reconheço culpa minha nisso tudo. Não facilito. Meu código de conduta, minha moral, minhas verdades... tudo muito rígido, inflexível.
- Pelo menos você não acha isso uma virtude.
- Não... não de tudo, pelo menos.
- Mas nem um pouco!
- Por que não?
- Ora, isso limita tua capacidade de mudar e aprender.
- E me impede de ceder.
- Exatamente!
- ...
- A gente tem que ser flexível, senão perde espaço.
- Não há coerência no teu argumento. Você está dizendo que ceder a sua verdade é garantir o teu espaço. Qual espaço é mais sagrado do que a tua própria verdade?
- Eu...
- Não há. E ser rígido não pressupõe incapacidade reflexiva. Eu estou problematizando isso, não?
- É...
- Pois veja você que eu nunca deixei de escutar, apesar de raramente todas as colocações me contemplarem.
- Ok...?
- É o que eu estava dizendo: a verdade, ou honestidade, chame do diabo que quiser, é mais satisfatória, mesmo na dor, do que qualquer concordância puramente conciliadora.
- Isso fecha portas.
- Pois que me fechem na cara!
- Ideia de cu! Veja como está: doente, não consegue dormir, come mal. É tudo o que está ganhando por tua cabeça dura!
- Não são as portas fechadas. Essas moldaram o que sou...
- Um cara angustiado. Muito bem, campeão! Quer uma prenda?
- Sabe...
- Não.
- ...
- Prossiga.
- Enfim... quando eu era mais moleque, geralmente tinha um único amigo por vez. Tinha época que eu andava mais de um ano com apenas um amigo. Unzinho. E tava bom. Se junto dele encontrava outros que não verdadeiros, torcia pra que logo fossem embora e me deixassem ter um amigo em paz. Aí em dado momento isso enfraquecia, passava a ver menos... pimba! Começava uma outra amizade. No mesmo molde. Fechada, mas ampla e cotidiana.
- E o amigo de antes?
- Guardado, moqueado como um bugio, pra durar mais. E até hoje, encontrando um deles, há cumplicidade. Estranha certeza de confiança. Parece que da pra saber tudo em poucos segundos, sabe? "Oi, e aê, e a facul... parará..." e pronto. Podem passar mais cinco, seis, doze anos! E permance. E sabe que pode ligar numa quarta a noite, encontrar num bar, tomar uma gelada e conversar a noite inteira. Essa pessoa merece minha verdade.
- Merece? Que puta egoísmo!
- Quantos amigos assim você tem?
- Ah... poucos, mas normal. É difícil uma amizade assim.
- Você se trocaria por um deles?
- Ahn?
- Algum deles vale a sua vida?
- Alguns, acho que... sim. Morreria por...
Pararam em uma esquina. Sinal fechado.
- Não! Porra... quem tá falando em morrer? Sua vida. Sua rotina. Sua verdade.
- Pfff claro!
- Mas não pra todos?
- Sem dúvidas que não.
- Pois é...
- ...
- É essa falta de propósito que me causa ância.
- Quem não chora não mama. Você tem que ir atrás.
- Nunca fui.
- Deu no que deu.
- Não é a primeira vez.
- Sério?
- Só estou pontuando meu momento, não minha vida.
- Mas você disse que desde sempre...
- Deve ser problema genético.
- Tem que ir num médico.
- É... pelo menos uma vez.
O sinal abriu pela terceira vez. Uma olhadinha. Atravessaram. Um café, pão de queijo. Conta.
- Legal te ver.
- Verdade. Bora marcar aquela lá um dia desses.
- Certeza.
- Falou.
- Até.
- Amargo ou azedo?
- Os dois, assim, bem na parte alta da garganta.
- É angústia.
- ...
- Quando você deitava de lado, melhorava?
- Não, a mesma coisa. De bruços... nada.
- É, se fosse azia melhorava.
Continuaram e sentaram na beira da calçada, um pouco afastados da boca-de-lobo, pra evitar o mau cheiro.
- Mas desde quando você tá assim?
- Não sei bem. Não me lembro de como era não ter.
- Desde pequeno, então?
- Não sei.
- Mas você não era assim, né? Nunca te falaram nada?
- Eu tinha problemas com minha alimentação, mas só. Agora isso é um pouco mais estranho. Me tira o sono.
- Não tem nada que ver com comida, não. Você era desses moleques sozinhos?
Os dois pararam pra olhar uma briga do outro lado da rua, mas ela era, como todo o resto, insignificante.
- Tipo, não tinha amigos?
- Tinha sim. Bons amigos. Respeito e gosto da maioria deles até hoje, mesmo não os vendo muito.
- Você não sai com muita gente, né?
- Não. No geral tenho preguiça.
- Devia sair mais. Conhecer mais gente...
- A troco de quê? Ainda tenho bons amigos. Apenas os vejo pouco. Não vou forçar o que não sou apenas pra não ficar sozinho. O problema é outro...
- Outro qual, manézão?
- O dia-a-dia.
- ...
A briga, que ainda não havia terminado, se estende pro lado da rua em que eles estão. Os dois se levantam, como quem faz um favor. Seguem.
- Entende o que quero dizer? Não se trata de ir às festas, bares, conhecer ou não as pessoas. Isso é o de menos.
- Como de menos? Vivência é o essencial!
- Não. Nunca foi. Não isso. Ficar em casa e trabalhar minha própria vida, cuidar de mim, é muito mais importante do que falsear relações e forjar sorrisos.
- Mas...
- Não estou negando a necessidade do outro. "A felicidade só é verdadeira quando é partilhada", já disse o Super-Andarilho. Acredito nisso. Mas partilhar é muito mais do que apenas se colocar diante o outro.
- Sim, mas...
- Mas nada. Vive-se muito numas de querer se expor aos outros, de contar o que se passa, de sorrir mais aos outros do que para si. E isso não faz sentido. Quero que os outros reajam verdadeiramente a minha verdade, assim como eu reagiria a deles.
- Isso não existe. Não da pra querer gente que te conhece assim o tempo todo, nesse cotidiano que você espera.
- Você falando assim, parece que é o mundo todo o que busco.
- Só que é do mundo que você cobra isso.
- Cobro, mas não exijo. Reconheço culpa minha nisso tudo. Não facilito. Meu código de conduta, minha moral, minhas verdades... tudo muito rígido, inflexível.
- Pelo menos você não acha isso uma virtude.
- Não... não de tudo, pelo menos.
- Mas nem um pouco!
- Por que não?
- Ora, isso limita tua capacidade de mudar e aprender.
- E me impede de ceder.
- Exatamente!
- ...
- A gente tem que ser flexível, senão perde espaço.
- Não há coerência no teu argumento. Você está dizendo que ceder a sua verdade é garantir o teu espaço. Qual espaço é mais sagrado do que a tua própria verdade?
- Eu...
- Não há. E ser rígido não pressupõe incapacidade reflexiva. Eu estou problematizando isso, não?
- É...
- Pois veja você que eu nunca deixei de escutar, apesar de raramente todas as colocações me contemplarem.
- Ok...?
- É o que eu estava dizendo: a verdade, ou honestidade, chame do diabo que quiser, é mais satisfatória, mesmo na dor, do que qualquer concordância puramente conciliadora.
- Isso fecha portas.
- Pois que me fechem na cara!
- Ideia de cu! Veja como está: doente, não consegue dormir, come mal. É tudo o que está ganhando por tua cabeça dura!
- Não são as portas fechadas. Essas moldaram o que sou...
- Um cara angustiado. Muito bem, campeão! Quer uma prenda?
- Sabe...
- Não.
- ...
- Prossiga.
- Enfim... quando eu era mais moleque, geralmente tinha um único amigo por vez. Tinha época que eu andava mais de um ano com apenas um amigo. Unzinho. E tava bom. Se junto dele encontrava outros que não verdadeiros, torcia pra que logo fossem embora e me deixassem ter um amigo em paz. Aí em dado momento isso enfraquecia, passava a ver menos... pimba! Começava uma outra amizade. No mesmo molde. Fechada, mas ampla e cotidiana.
- E o amigo de antes?
- Guardado, moqueado como um bugio, pra durar mais. E até hoje, encontrando um deles, há cumplicidade. Estranha certeza de confiança. Parece que da pra saber tudo em poucos segundos, sabe? "Oi, e aê, e a facul... parará..." e pronto. Podem passar mais cinco, seis, doze anos! E permance. E sabe que pode ligar numa quarta a noite, encontrar num bar, tomar uma gelada e conversar a noite inteira. Essa pessoa merece minha verdade.
- Merece? Que puta egoísmo!
- Quantos amigos assim você tem?
- Ah... poucos, mas normal. É difícil uma amizade assim.
- Você se trocaria por um deles?
- Ahn?
- Algum deles vale a sua vida?
- Alguns, acho que... sim. Morreria por...
Pararam em uma esquina. Sinal fechado.
- Não! Porra... quem tá falando em morrer? Sua vida. Sua rotina. Sua verdade.
- Pfff claro!
- Mas não pra todos?
- Sem dúvidas que não.
- Pois é...
- ...
- É essa falta de propósito que me causa ância.
- Quem não chora não mama. Você tem que ir atrás.
- Nunca fui.
- Deu no que deu.
- Não é a primeira vez.
- Sério?
- Só estou pontuando meu momento, não minha vida.
- Mas você disse que desde sempre...
- Deve ser problema genético.
- Tem que ir num médico.
- É... pelo menos uma vez.
O sinal abriu pela terceira vez. Uma olhadinha. Atravessaram. Um café, pão de queijo. Conta.
- Legal te ver.
- Verdade. Bora marcar aquela lá um dia desses.
- Certeza.
- Falou.
- Até.
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