Quando R... me olhou, ainda que sem ter começado a subir as escadas, pude prever o tamanho do erro que iríamos cometer.
- Oi...
A frieza com que me cumprimentou só não foi maior que o próprio sentimento de culpa por ter de fazê-lo pessoalmente; realidade notável quando, acabando de subir, pressionou os lábios um contra o outro e baixou os olhos.
Não fui, evidentemente, capaz de demonstrar qualquer sinal de deselegância, como tencionei fazer ao ensaiar este encontro. Mesmo quando o coração me parece prestes à saltar pelos dedos, racionalizo um mínimo de galanteio – seja com qual dama for.
- Oi oi! Tudo bom? Fez boa viagem? Dê-me a mala, eu carrego.
- Não precisa, eu...
- Faço questão, R...
O sorriso enrubescido de quem fica sem graça de tão agradecido é capaz de fazer tremer meu par de pernas. Há algo de satisfatório nisso; faz-me orgulho à própria espontaneidade. Buscando algum refúgio da incômoda situação, tentou justificar sua pele avivada:
- Foi tudo bem, só um pouco cansada da espera.
- Há muito que saiu de...?
- Ahan! Ainda não batiam às 10h quando embarquei – Disse isso com os olhos ligeiramente cerrados, sabendo como isso me afetaria, pois o relógio já avançava além das 18h naquele momento. – e estou sem comer desde então. Minha cabeça quase dói.
***
As conversas travadas no início do caminho para casa pareciam suplantar todas as questões que há muito vinham tornando momentos como esse, indesejáveis. Todo meu rancor casava-se com a penitência óbvia, estampada em seus olhos.
- P..., desculpa por... – Com dificuldade, deixou sair o resto. – é que tenho medo de passar a madrugada na...
Apesar dos pedidos de desculpa, estava claro que por maior equívoco que aquilo fosse, o desejo mútuo de que acontecesse era latente.
- Não peça desculpas. Você sabe bem que uma coisa não tem a ver com a outra. Eu jamais fecharia as portas de minha casa a você. – E sem saber mais como esconder minha aflição de mentir com ela, soltei qualquer frase de efeito, como “uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa”, ou qualquer disparate literário do gênero.
Percebi que sua respiração se alterou de modo angustiante. Antes de olhar para ela eu já sabia que meu coração iria desfalecer. Seus olhos avermelharam e brilhavam como cristais, fixos no caminho, mas incapazes de demonstrar qualquer racionalidade. O queixo franzido e os lábios retorcidos tornavam a cena ainda mais piedosa.
Quando se quer acreditar em um futuro, as evidências da rotina se tornam proféticas, capazes de arrastar consigo um romance homérico, com começo, meio e fim, além de todos os desenlaces relativos às sensações. Há uma perfeição nessas criações súbitas que mesmo Dostoievski seria incapaz de relatar em mais quatrocentas páginas de voz do subsolo; mas elas se firmam no pensamento com tamanha rigidez que no instante seguinte é impossível crer que não sejam verdade.
Figurei aquela reação como um sopro de esperança enterrado nas mentiras de nossos fetiches cotidianos. É como um tiro, mas aveludado.
- Não fique assim, afinal sou eu quem tem os motivos para isso. – Por vezes me impressiono como cada colocação minha toma a forma de uma censura. – Não têm cabimento estas tuas lágrimas. Pare.
O nosso silenciar só encerrou quando ‘comida’ se tornou pauta e, falando sobre isso, deixamos o resto como verdade velada e a resolver, restando ao estômago se virar para sobreviver.
***
Quando nos aproximamos do portão de casa, R... de súbito expressou uma preocupação peculiar.
- Estou com vergonha do que possam pensar.
- Não há nada do que se envergonhar. Este é um assunto nosso. – Respondi como de hábito, tentando tranquilizá-la.
- É, mas a casa não é só sua e o que podem os outros pens...
- Danem-se os outros! – Interrompi grosseiramente, irritado com sua constante preocupação sobre o que os outros pensariam a respeito. – Ficará no meu quarto e se alguém tem algo à ponderar sobre isso, que guarde para si! Você sabe muito bem que se esse fato afeta alguém, é especialmente a mim.
Ela se calou, aceitando minha colocação, mas não sei se isso pela gravidade de minha fala ou se por embaraço de sua própria inquietação.
***
Sempre sou acometido por um sutil prazer sádico quando antecipo uma situação desagradável. Parece ser possível ler um crescente desespero nos ânimos dos que prevêem tais momentos; mil feições e pensamentos entre um piscar de olhos e outro. Ali não era diferente. R... estava visivelmente incomodada com a presença de outras pessoas naquele lugar que tão bem conhecia, mas duvidava sobre um possível breve retorno. Olhei, enquanto saía da escada e me dirigia à porta, e sua cabeça abaixada não me transtornava mais do que o pio de vingança que acompanhava cada uma de minhas palavras de consolo.
- Oi A...! – É impressionante como o medo e a culpa podem nos tornar impetuosamente animados. A simpatia visivelmente desesperada, com que entrou cumprimentando a velha conhecida, soou como uma explosão de mentiras frente à fúnebre face de quem já ruborizou só de pensar no assunto.
- Oooi R...! Nossa, que surpresa! – Eu poderia ver essa cena se repetir vez após vez, sem me cansar. O alongamento daquele ‘oi’ disse mais sobre a opinião de A... sobre ela do que qualquer entrevista de uma hora entre as duas. A real surpresa vinha apenas na garupa de mil pensamentos sobre os motivos e consequências da presença de R... naquela casa.
A pequena prosa que seguiu dali foi um pouco menos dramática, apesar da gravidade escondida nos olhos das interlocutoras. Enquanto uma sonhava com buracos no chão, sabendo da claridade dos fatos para todos, a outra me julgava com o canto do olho, intuindo o que meu triste sorriso queria dizer, pois estava a par de todo o mal que R... me causou.
***
- Pode colocar tuas coisas aqui. Dei uma ajeitada em tudo nessa última semana. Não repare na limpeza. Há! Há! Há! – Após a cena da sala, achei por bem continuar assim para suprimir o mal-estar.
- Há! Há! Bobo! Estou cansada, posso tomar um banho?
- Fique à vontade. Vou descer e arrumar algumas coisas. Depois também tomarei uma chuveirada. Tome uma toalha. Não tenha pressa.
Saí do quarto e me retive alguns instantes no corredor escuro, antes de avançar à escada. “Quem eu quero enganar? Inferno!” A cabeça já começava a conjecturar situações lascivas e precipitava-se ao não deixá-las partir tão logo aparecessem. “Amanhã tudo acaba e eu permaneço. Imóvel, mais uma vez. Estou viciado.”
Desci.
***
- Poupe-se. – A... me disse isso com uma seriedade confirmada pelo idos anos da experiência. A firmeza de seu olhar adquiriu um ar profético, mas não ali. Não naquele momento.
- Eu sei. – “Não, não sei.”
***
Subi depois que o barulho de água cessou e a luz do quarto já havia acendido. A porta encostada só deixava passar uma fresta de luz. O cheiro que tomava o corredor me atordoava. Aquele perfume, que há tanto impregnava meus lençóis e fazia minha saudade se desfazer em sensações, agora angustiava meu espírito ao revivê-la em sua face doentia, cheia de desejos e pecados.
- R..., está vestida?
- Ainda não.
Empedrei frente à porta, deixando a imaginação reconstruir todo o corpo que me foi privado. Texturas que acompanham os dedos há mais de meia década totalmente reconstruídas. Dei dois passos para trás e encostei-me à parede, voltado à escada, esperando ela se aprontar e perdendo completamente o controle dos objetivos estabelecidos quando aquela decisão foi tomada. Todo o trabalho empenhado para aprumar o raciocínio, retomar a claridade lógica, restabelecer o olhar cristalino da leitura, circulando o sangue para os veios adequados... tudo demolido em segundos. “Ela é tão minha!”
Quando a porta abriu, o ímpeto me fez escorregar precipitadamente quarto adentro. Todo o ambiente estava consumido pelo perfume. Ela estava linda. Fosse outro o momento de nossa vivência eu teria avançado e despido-a naquele exato instante, mas me retive a um singelo sorriso, peguei minha toalha e fui para o banheiro, resignado. Eu a desejava mais que tudo, por mais que soubesse o salto no abismo que isso significaria. Tomei um banho gelado, pus minha melhor roupa e saímos para comer.
***
Pedi uma cerveja e ela um refresco. Aquilo me inquietou, mas talvez só por dirimir minha esperança de tê-la ainda uma última vez. Ela se justificou como sendo abstêmia, ao menos para compensar a semana que se encerrava. Como se eu precisasse beber. Como se ela precisasse se justificar.
A conversa seguiu por hora e meia, percorrendo caminhos diversos e de interesse mútuo, mas sempre suprimindo detalhes pessoais e íntimos. Toda a facilidade em encontrar assunto foi vitimada por solavancos que beiravam o constrangimento em saber que havia algo permanentemente errado naquela situação. Não devíamos estar lá, sentados, elogiando a excelente refeição, tendo cristalizada na razão a certeza da falha no que tanto já nos orgulhou. Mentíamos, como se o sorriso fosse pleno e as frases completas. Mentíamos, propositalmente, a nossos próprios espíritos afoitos pelo fechar das cortinas.
***
- Aqui: lençol, colcha, travesseiro e uma colcha mais grossa, caso sinta muito frio.
Peculiarmente àquela época do ano – mal acabara o verão –, certo frio se fazia presente e muito bem vindo, haja visto meu desprezo pelo calor excessivo que vinha atormentando meus dias de trabalho. As baixas temperaturas são sempre um consolo aos espíritos mais deprimidos e caseiros, particularmente aos amantes dos livros, das bebidas quentes e dos amores.
Ela agradeceu timidamente. Parecia mesmo se envergonhar daquela situação inesperada. Tudo ali era muito íntimo e ao mesmo tempo embaraçoso. Havia uma complicação nos gestos e nas palavras que não se assemelhava ao excesso de dedos dos novos casais, recém conhecidos, ansiosos para se amarem; mas a dos que, de tão bem se conhecerem, não entendem o protocolo de conduta para os que já não mais podem se tocar – ao menos não deveriam poder, ou acreditam que não deveriam.
- Vou descer, buscar água. Fique à vontade para se trocar, escovar os dentes, enfim... você sabe.
Ao voltar, as coisas pareciam não ter se alterado em nada. Talvez ela só tivesse escovado os dentes, não soube dizer. Falseando tranquilidade, me troquei em sua frente. Dispus os colchões desalinhadamente sobre o tapete e um pouco afastados, o que tornou a situação particularmente incômoda por deixar claro que aquela era a primeira vez, desde que nos conhecemos, onde supostamente apenas dividiríamos o quarto, nada mais. Ela me pediu uma camiseta para usar. Ofereci também uma calça de moletom, mas ela recusou. As ideias se processaram de maneira extremamente acelerada e eu estremeci. Eu já estava entregue e nem sequer havia aceitado esta ideia.
Eu sentei no colchão e ela se despiu ali mesmo, mas me pediu para virar o rosto. Cobriu-se e ficamos proseando por alguns instantes. Cada palavra, cada gesto, tudo se tornava pretexto para nos aproximarmos; rir virou motivo para tocar o outro.
- Do que fala este livro que está lendo? – R... apontou para o de capa laranja sobre o criado-mudo.
Empalideci. Havia algo naquela pergunta que não soava espontâneo, mas não consegui identificar de imediato. Apenas quando atentei à carta que estava sobre a mesa, que eu escrevera naquela manhã para um grande amigo, citando a obra e alguns devaneios de momento sobre um paralelismo entre a personagem central e meus meses que iam se passando, compreendi meu desespero.
- Fala sobre um rapaz, Werther, que por não aguentar mais sofrer de amor, toma uma decisão resolutiva...
- Que é?
- Suicídio. Ele se mata com um tiro sobre o olho, agonizando antes durante muitas horas.
- Nossa P..., que horror! Esse não é o tipo de coisa que você deveria ficar lendo agora. Você sabe disso! – O modo como me julgou não pareceu aleatório.
- É realmente impressionante como Goethe consegue, pelas palavras de Werther, justificar suas próprias pretensões. Diz-se que ele escreveu o livro para não tomar aquela resolução para si mesmo. Faz sentido: escrever liberta. Além disso, a justificação para a atitude da personagem é muito interessante e eloquente. Paralela à sua publicação, uma onda de suicídio tomou os jovens da Alemanha.
- Poxa...
- Não se preocupe – Interei. – tenho a cabeça no lugar. Há! Há! Há!
Seguimos ainda palestrando por outros assuntos, esquivando da palavra nossos verdadeiros anseios. Eu tinha como certeza, pelo menos, que o primeiro passo não seria meu, mesmo que isso me causasse o maior dos arrependimentos. Ela que travasse sua própria guerra, pois eu já estava em combate havia muito tempo.
- Me dá um abraço?
Aquela pergunta resolvia a questão. Dali em diante tudo foi fácil. Não há ser vivente sobre esta terra que nos conheça tão bem quanto nós mesmos. Todas as aflições, agonias e incômodos das horas anteriores desapareceram. Silenciamo-nos desesperadamente.
***
- Desculpa...
- Não fale! – Censurei-a.
O sono veio e eu não queria fechar os olhos pela primeira vez em meses. Dormir significava acordar. Acordar significava partir. Se eu não pregasse a vista, permaneceríamos ali eternamente, como tanto já me orgulhara de supor em tempos pretéritos.
Contos de fadas são tolices. Dormimos.
***
Sempre a achei mais bela pela manhã, mas ao tocar, o despertador atou um nó cego em minhas vísceras e queimou juntas suas pontas, para que eu nunca descobrisse seu começo e fim, desfigurando todo o potencial sublime daquele acordar, obrigando o renascer de todo o grotesco que minha cabeça havia esquecido de ser na noite anterior. Experimentei o desespero e o ressentimento dos que tem a vida violada pelo cárcere.
Deixei-a na estação e não nos falamos mais.
Na quarta feira seguinte – cinzas –, às onze horas e quarenta e cinco minutos da manhã, após beber meio litro de pisco e cheirar oito gramas de cocaína, morri de overdose dentro do meu quarto. Dois dias depois um grande amigo pulou do sexto andar do conjunto residencial onde morava e morreu na hora.
Na sexta feira de carnaval do ano seguinte todos se benzeram e choraram duas lágrimas. Nas outras noites beberam e acompanharam o principal bloco da cidade.
___
Outono . 2011
Nenhum comentário:
Postar um comentário