segunda-feira, 15 de agosto de 2011

do cair

Hesitei por um curto instante, mas meus pés já estavam afastados demais da borda para que eu voltasse atrás. Pensei em talvez me virar e agarrar qualquer coisa, mas achei que assim só me ralaria e tornaria o processo ainda mais agoniante. Fui. A sensação não é de leveza, como sonham garotinhas ao imaginarem-se pardais, mas sim daquela pressão no estômago, com o sangue correndo cabeça acima, quando o avião se prepara para pousar e você se controla, para que não te chamem de ruminante. O universo conspirando para que você não fique ali, feliz, estático. As mãos e braços não ficam simplesmente parados, como planejado: sacudi-las parece uma boa ideia, como se pudesse retardar alguma coisa ou quem sabe fazer de mim realmente um passarinho covarde. Ao menos não gritei. Achei meninice demais gritar e, ainda um pouco depois, relaxei os braços e consegui ouvir o zunido do vento em meus ouvidos. Talvez com trilha sonora fosse mais dramático e menos irritante, mas acho esse tipo de planejamento meio descabido, afinal, é só ir e fazer, não? Essa ânsia por adornar e tornar cada decisão um espetáculo, como se alguém se importasse mesmo com essa ação. É bem possível mesmo que pessoa alguma se importe e o agora seja apenas uma potencial memória volátil. Será assim com todos? Por quanto tempo recordarei eventos de suma importância, como as surras no colegial, as brochadas com desconhecidas e as afliçõezinhas de paixões súbitas? Não seria melhor esquecer tudo, ficar com a cabeça sempre neutra ao passado, sem rancor, sem memória, sem arrependimentos? Se o problema fosse não lembrar das pessoas, ora, que mal haveria se eu nunca tivesse-as conhecido, tampouco soubesse o que é companhia? Qual o erro em zerar o cotidiano? Deve ser por isso esse medo de morrer que as pessoas tem: não lembrar. E eu aqui, bebendo pra esquecer. Esquecer o verde das paredes de minha infância; esquecer a cara de cachorro sarnento de quem não me poupou a intolerância; esquecer as noites que, de tão silenciosas e solitárias, me faziam dormir contando pulsações com a mão debaixo de minha própria bunda, pra esquentar os dedos; esquecer a calhordice de quem nunca me agradeceu com honestidade. Ao menos nunca votei com meu próprio nome: sempre fui chamado de “eleitor” ou “povo brasileiro”. Bem que eu poderia esquecer tudo agora. Juntar essas lembranças e largá-las lá no fundo. Com o olho fechado, sinto meu corpo finalmente tocando o limite previsto. Apesar de todo o frio molhado que me envolve, só posso sentir minha pele arder. O vento foi substituído por um estrondo de ressaca e martelos do Hemingway abatendo marlins monstruosos. O desespero branco desse turbilhão claustrofóbico me deixa um pouco cego. Me sinto massacrado por torrentes de espuma, como um operário coreano frente à polícia. Olho pra cima e ainda posso ver a luz ondular, apesar de recordar a tarde nublada de instantes atrás. Fecho os olhos e subo. Inspiro profundamente e me acho vivo.
- Tá muito fria?
- Tá ótima. Pula!

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