Inácio, que vem dormindo pouco por boa-venturança de
coisas do desejo, aporreia-se, nas horas vagas desses cheiros tintos,
com o descompasso dos favores e das obrigações. Ora, ainda não
marmanjo, teve lição de educação por vez de uma coça do pai e
soube que era deselegante -o velho nunca assumiu que os filhos também
podiam vir a dar com o erro- fazer não-uso de 'por favores' e
'gratos'. Ficou pra sempre agradecido pela aula -ainda porque não
foi dada na ponta do marmelo, graças ao bom Deus, pensou à época-
pois o aprendizado lhe rendeu bom sorrir da vida. E agora
isso: faz como que por obrigação o que por ele se é um grande
favor. Disse ele assim à Irene:
- Amor incondicional? Não me parece ter disso não.
Veja que maio vem bulindo comigo já há século e meio e nada fiz eu
a Deus. Pelo contrário, em grande verdade e quantidade, e você sabe
bem o quanto isso me custou.
Ela arregalou as vistas e apontou os densos e castanhos
olhos pro chão, como quem se impressiona com as ideias de um
anarquista, sem saber se concorda ou chora. Ficou um pouco pensativa
enquanto prendia o foco no gato que parecia invisível naquele faixo
de sol gritando no tapete. Inácio prosseguiu:
- Lembra do Kafka?
- E o que tem que ver?
- É como n'A Metamorfose, só que aqui não sou eu -a barata- quem carrega doença. E a obrigação ainda se mantém na minha alçada. Que espécie de amor é esse?
- É como n'A Metamorfose, só que aqui não sou eu -a barata- quem carrega doença. E a obrigação ainda se mantém na minha alçada. Que espécie de amor é esse?
Os dois preferiram calar uns instantes. Beijaram-se que
anoiteceu treze vezes antes de respirarem a primeira vez. Ela foi
quem retomou:
- Entendo o que você diz e mesmo acho difícil que
fosse diferente. Quando o cabelo começa a cair, parece que não é
estranho nesse mundo que façam junto movimento as papas da língua e
as lembranças do que vivemos -como eu e você nesse instante. Mas as
vezes, de nossa parte, é preciso calar. Veja você que não da pra
saber se embolaremos na mesma daqui nossas eras, não?
Irene puxou o ventre de Inácio pra junto do seu e falou
bem perto do rosto, quase que comendo seus olhos:
- Lembre-se que também você é fardo.
Inácio corou, primeiro de vergonha, depois de tesão.
Ocuparam-se um do outro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário