domingo, 11 de setembro de 2011

dos favores e das obrigações


  Inácio, que vem dormindo pouco por boa-venturança de coisas do desejo, aporreia-se, nas horas vagas desses cheiros tintos, com o descompasso dos favores e das obrigações. Ora, ainda não marmanjo, teve lição de educação por vez de uma coça do pai e soube que era deselegante -o velho nunca assumiu que os filhos também podiam vir a dar com o erro- fazer não-uso de 'por favores' e 'gratos'. Ficou pra sempre agradecido pela aula -ainda porque não foi dada na ponta do marmelo, graças ao bom Deus, pensou à época- pois o aprendizado lhe rendeu bom sorrir da vida. E agora isso: faz como que por obrigação o que por ele se é um grande favor. Disse ele assim à Irene:
  - Amor incondicional? Não me parece ter disso não. Veja que maio vem bulindo comigo já há século e meio e nada fiz eu a Deus. Pelo contrário, em grande verdade e quantidade, e você sabe bem o quanto isso me custou.
  Ela arregalou as vistas e apontou os densos e castanhos olhos pro chão, como quem se impressiona com as ideias de um anarquista, sem saber se concorda ou chora. Ficou um pouco pensativa enquanto prendia o foco no gato que parecia invisível naquele faixo de sol gritando no tapete. Inácio prosseguiu:
 - Lembra do Kafka?
 - E o que tem que ver?
 - É como n'A Metamorfose, só que aqui não sou eu -a barata- quem carrega doença. E a obrigação ainda se mantém na minha alçada. Que espécie de amor é esse?
  Os dois preferiram calar uns instantes. Beijaram-se que anoiteceu treze vezes antes de respirarem a primeira vez. Ela foi quem retomou:
  - Entendo o que você diz e mesmo acho difícil que fosse diferente. Quando o cabelo começa a cair, parece que não é estranho nesse mundo que façam junto movimento as papas da língua e as lembranças do que vivemos -como eu e você nesse instante. Mas as vezes, de nossa parte, é preciso calar. Veja você que não da pra saber se embolaremos na mesma daqui nossas eras, não?
  Irene puxou o ventre de Inácio pra junto do seu e falou bem perto do rosto, quase que comendo seus olhos:
  - Lembre-se que também você é fardo.
  Inácio corou, primeiro de vergonha, depois de tesão. Ocuparam-se um do outro.

Nenhum comentário:

Postar um comentário