Há cerca de duas semanas que
convivo, na faculdade que trabalho e estudo, com pilhas caótica e objetivamente
ordenadas de cadeiras. Há algo no apelo estético chamado por elas que fascina.
Pro bem ou mal, tanto faz, mas chamam. E é esse chamado que me atenta a
pensá-las.
A imagem imaculada da escola e,
principalmente, da sala de aula, forjada pela disciplina e pureza exigidas dos
alunos e professores, distanciam-nos de uma chave de concepção de sua
existência. Lugar comum, hoje, crer que dispor as carteiras em círculo é uma
forma “alternativa” de vivência sócio-espacial da classe, capaz de reestruturar
a relação professor-aluno -em uma tentativa de resistir ao uso religioso do
quadro-negro-branco-verde-touch como tecnologia de transmissão e materialização
do conhecimento-, quando em verdade apenas põe-se em voga uma outra norma
organizacional que não permite deslizes: ninguém mais à frente, ninguém mais
atrás. Domínio visual pleno do professor sobre os alunos.
Ordem, clareza e igualdade
(simetria): controle.
De toda forma, essa prática se
restringe a limitado grupo de professores, que deu um passo à frente (ou
sutilmente em uma diagonal) das cartesianíssimas fileiras, invariavelmente
mapeadas, disciplinadoras do olhas docente, que se habituará à morfologia
preestabelecida de cada turma, facilitando a compreensão comportamental destas,
assim como seu controle. Pôr-se no seu lugar, da mesma forma, torna-se um
hábito dos alunos. Essa experiência acompanha por um tempo cada vez mais
prolongado a vida humana, que guardará essa nova verdade desde a mais breve
infância.
Daí que nos deparamos, belo dia
de greve, com as tais cadeiras empilhadas e, como se não bastasse, à frente da
porta das salas de aula. Visíveis, também, pelos corredores, rampas de acesso,
escadas e até mesmo junto a elevadores. Algo afeta imediatamente aquele altar
esculpido em nosso espírito, travando imediatamente nosso passo, reduzindo a
elas nosso ver e pensar, atacando nosso devir.
Dá-se então início a uma série
de formulações sobre esta “entidade” com a qual confrontamo-nos, que tomam
recorrente direção à repulsa e à raiva, traduzidos em resmungos e pequenas
ofensas, mas que podem ganhar corpo num embate físico ou numa acalorada e ímpar
discussão virtual que alguma rede social pode propiciar.
Dessa discussão sobre o viés
democrático, ou não, sobre esta forma de piquete, me reservo a pensar uma
segunda função que ele cumpre, para além de impedir que alunos e professores
“furem” a greve votada em assembléia -essa também com uma forma bem
cristalizada, apesar de polêmica.
Atrai-me -e até julgo bela- a
agressividade com que a forma caótica do piquete atravessa o espírito. O ataque
preciso às nossas expectativas de simetria nos afasta da sala de aula e nos põe
num espaço alheio ao ordenamento do conhecimento. A falta do hábito de pensar
basicamente qualquer outra vivência no contexto escolar possibilita por em
xeque, ao menos momentaneamente, um dogma disciplinar moderno.
O campo de existências,
inclusive acadêmicas, fora do lugar da sala de aula, torna-se imediatamente
infinito. O piquete se coloca como proposta de uma coisa outra, indefinida, em
lugar, que exige do sujeito uma ação. O caos propõe, ainda que algo difuso. Num
instante, absolutamente volátil, a sala de aula não existe mais.
É esse ponto, breve momento de
suspensão, que nos divide. Nossa capacidade para lidar com esse súbito ascender
de violência coloca-nos, finalmente, prontos ao diálogo sobre o que ainda não
tem lugar definido ou quem sabe, indisposto a existir fora de uma (bem
difundida) norma.